sexta-feira, 28 de março de 2008

Não olhou. Não disse absolutamente nada. Permaneceu intacto e inerte e sem vida. Vestiu o casaco e saiu.

Passeava na rua. A garrafa estava já vazia; o tronco despido. Continuou e, por três vezes, repetiu o percurso à volta do parque.

Sorria. Sorria muito; sorria sempre: voava até. Procurava o sopro em cada toque. Quis parar de mexer os lábios e foi aí que decidiu morrer.

Estava frio. Pensou, Ainda bem que vesti o casaco.

Ia para casa, como em tantos outros dias em que o frio não aquece, em que o sol se esconde raiado nos dentes. Apertou-se; apertou-se muito e sentiu os ossos a gemerem: era a dor a marcar presença num corpo esguio. Pensou. Pensou que queria estar ali, entre o frio e o desejo de não estar quente. Até que a viu. E parou.

Andar faz-me bem., pensou de si para si. Tronco despido, seios fartos, costas bem desenhadas a chorarem por aconchego. Mas eram só as costas: só as costas choram e se encolhem e clamam por abrigo. O peito é a vida aberta para que o mundo se sugue e se consuma enquanto os pianos procuram o ouvido certo nas mãos perfeitas. Mas ela sabe disso. E sabe também que são os pés que a chamam: vá, S., abre a dor.

Decidiu morrer, não por uma qualquer leviandade; decidiu morrer porque estava já velha. E cansada também. Cansada de vacilar entre o chão e o vento; cansada de andar à deriva na espera que o toque de alguém lhe pudesse dar um outro rumo; cansada de correr riscos. Porque não, pergunto? Porque não decidir morrer quando os sopros já não nos dizem nada?

Pegou-lhe com jeito. Sentiu o calor a calcorrear os nervos, formigueiro no cérebro, frios filhos de chamas. Ainda assim pegou-lhe. Olhou-a com doçura. Olhou e viu-a tão pálida e tardia num amor acelerado. Ofegante, gesticulava. Media a densidade do ar com a saliva que escorria. E percebeu. Não morras., pediu.

Ela olhava ainda nua e os pés a chamá-la. Não., repetia com persistência, Não vou abrir a dor. Olhou para o homem do casaco: aflito. Chegou perto e viu-o: aproximou-se e sentiu aquele calor doentio, quando só o frio os podia aquecer.

O que foi?

São os pés que querem que eu abra a dor.

Porque não decidir morrer quando os sopros já não nos dizem nada?

Não morras., disse-lhe o homem do casaco.

São os teus pés que te estão a chamar?, indagou S.

Porque não?, falou-lhe a folha.

O homem apertou-a. Virou-se para S., falou-lhe do cansaço da folha e fez o pedido, Deixa-me só salvá-la. Depois chorou.

E ela esperou.

E ele percebeu.

1 comentário:

Anónimo disse...

Denso; narcótico; flutuações de peso concedidas.
Não, não é apenas uma história: são muitas e a mesma em si.
Fantástica, porque para além do preenchimento que permite ao ler, lança mais desafios que nunca, convites a voos intermináveis: percursos da imaginação para terminar na singeleza que só a beleza do que é simples permite.
Possui ainda o fascinante exercício da leitura cruzada-sequencial-em-matriz: de vidas: de personagens.
Ler de início ao fim: ler por personagem: depois de forma interpolada: ousar ler por peça solta ou pela aleatoriedade dos sentidos, com os olhos bem fechados.
Imagens poderosas projectadas por uma dança sem classificação “… o calor a calcorrear os nervos, formigueiro no cérebro, frios filhos de chamas”.
“… só as costas choram e se encolhem e clamam por abrigo. O peito é a vida aberta para que o mundo se sugue e se consuma enquanto os pianos procuram o ouvido certo nas mãos perfeitas.”: onde anteriormente a Geografia Emocional se movia ao nível dos sentidos, aqui mostra o seu objecto ao nível mais físico: depurado em toda a longitude do que é belo.
Aqui a escrita deixa de ter tamanho: o caleidoscópio recusa o toque: o que se espreita decorre de forma absolutamente vertiginosa.
A propósito: a(s) história(s) é (são) muito boa(s).