sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Estou cá fora: espero no carro. Olho para o lado e vejo que saiste sem me deixares um sinal. Espero no carro: espero que desças. Estou nisto há tantas horas. Mas tu não desces.
O perfume percorre os espaços vazios. Esfrego as mãos. Repito a mesma música que deixaste ficar antes de sair. Sabes, já não sei viver sem ela. Se algum dia ousasse sair do carro, o meu corpo seria a locomotiva de embalo pelos toques que desenham o teu tom.
Não me lembro de quando comi: recordo a última vez que aqui estiveste sentada e me disseste Eu já volto. Por isso espero. Tu disseste Eu já volto. Vi três manhãs a nascer. Vi os carros a passar, as pessoas apressadas, as crianças embrulhadas em cascóis e gorros escondendo sorrisos marotos. Vi o frio a espreitar, o sol a imiscuir-se na vida, e o nevoeiro a anunciar a vinda de mais uma noite enrugada. Num desses dias perguntei-me se já terias vindo sem eu ter reparado. Mas depois pensei que estive sempre aqui, à tua espera. Depois alarmei-me: será que a música não me deixou ouvir-te chegar? Poderia ser. Poderia ser que a cor dos teus caracóis fosse a música de que tanto gosto de ouvir. Então olhei para o banco ao meu lado e vi que não estavas. Sorri: claro! Não houve brisa alguma a alongar a minha existência. Se abrisses a porta era isso que eu sentiria: o teu olhar no meu perpetua-me.
Depois deste meu erro, já passaram pelo carro muitas caras; quase sempre as mesmas. Sei que a moradora do 4.º esquerdo sai às oito, quando o sol opta por raiar o tablier do carro onde espero; a família do rés-do-chão está quase sempre atrasada. Os miúdos são os únicos que me conhecem e quando passam abrandam o passo e olham, olham muito cá para dentro. Querem saber se já chegaste. Encolho os ombros e digo que ainda estou à espera. Eles riem-se e dizem-me adeus. Mas eu não desisto. Tu disseste Eu já volto. E eu acredito que vais mesmo abrir a porta e dares-me um beijo, como sempre fizeste. Acredito que me vais segurar na face, acariciar-me e dizeres Desculpa amor ter demorado tanto tempo a perceber que o carro estava aqui e que permaneceste nele à minha espera. Sei que sim.
Já passaram 20 anos e tu continuas sem me trazer o vento. Eu cá estou, sem comida para o corpo, cultivando no amor que me ofereceste um dia as rosas com que te presentearei quando entrares de novo na minha vida e me disseres Vamos prosseguir a viagem?

3 comentários:

Anónimo disse...

"a arte do mundo
quebra a vara na água da luz
declinado o simulacro

e devolve-a inteira
à sombra que as mãos escrevem no ar
terra da terra

fractura exposta ao assombro

haste da lua que vibra
até desaparecer
e suspender a noite

sobre a manhã renascente"

blueiela disse...

Olá...

Gosto de palavras...as tuas estão vivas...parabéns :)

Matilde Eça de Queiroz disse...

Querida D.
Como sempre fico rendida à tua escrita. Nunca deixes de o fazer pois nesse dia o mundo ficaria mais pobre.
beijos
MC