quarta-feira, 12 de março de 2008

Espasmos. Pedaços de alimento torturados no vácuo.

Pintas. Fragmentas o tom da nossa solidão. Passeias lá fora e eu, eu retenho de ti todas as formas com que coloriste o nosso amor. Os traços são pouco nítidos: para perceber preciso de fios condutores, como naquele dia em que quisemos saltar o muro da dona Graça, lembras-te? E roubámos maças para comermos deitados na relva, junto ao sobreiro longínquo que fazia parte do nosso imaginário. Lembras-te? Tudo isso partiu contigo. Evoco apenas as partes que me são musculares para a sobrevivência.

Sou imperfeita, eu sei. Sou a chuva que não acaba, sou as gotas que evitas no suor dos nossos dias. Mas escuta: os traços abstractos em que me defino transformam o nada numa imensidão que procuro compor. Não há vazio que me diga o contrário. Não há amplitude que se estranhe mais do que o próprio estalar dos dedos quando já nem as mãos sentimos.

Estou cansada, cansada das luzes ténues que nos banham a fraqueza: não faz diferença a fuga. Não faz. E na doce loucura em que respiro pela continuação do teu sopro nada fará deter o enxame de partículas que nos definem.

Mexo-me agora um pouco, dessa cama que me sustenta e me entende; não estás: passeias lá fora. E os pincéis continuam a pingar o nosso amor. Olho as pegadas no rasto do chão: percebo como se movimenta a inversão de um fogo já extinto.

Sem pestanejar, sequer, sugo a diferença que acalenta a crença. Sim, sou loucura já consumada; sim, o fim que temia está perto do quadro que deixaste inacabado. Por todo o lado há vultos e ladrões. Digo-lhes que não: que o cansaço não encolhe o perdão. Que estou nos braços da decadência profana, da decadência que acolhe e ama.

Vejo-te: passeias lá fora; sempre fora de mim. E eu cá dentro; no interior da verdade que dói; tolhida do espaço que já não é teu.

Há sempre uma razão, dizes. Há sempre a razão, digo. Mas as memórias parecem falhar o percurso da complementaridade. E só o silêncio define o conforto com que dois olhares se amam.

1 comentário:

Anónimo disse...

esta escrita possui um movimento único: tudo é respirado, tudo explode na mais espantosa forma de uma dança sustida. Muito bom. Muito.